Um pouco de Adição, Multiplicação, Logaritmos e Exponenciais
A adição de números reais possui propriedades que aprendemos cedo na vida estudantil: $$ \begin{array}{lc} \textrm{Comutatividade:} & x + y =y + x \\ \textrm{Associatividade:} &x+ (y+z)= (x+y)+z \\ \textrm{Elemento Neutro:} & x+ 0 = 0 + x = x \\ \textrm{Inverso:} & x + (-x) =0\end{array}$$Também sabemos que a multiplicação possui propriedades similares: $$ \begin{array}{lc} \textrm{Comutatividade:} & x \times y = y \times x \\ \textrm{Associatividade:} & x\times (y\times z)= (x\times y)\times z \\ \textrm{Elemento Neutro:} & x\times 1 = 1 \times x = x \\ \textrm{Inverso:} & x \times (x^{-1}) =1\end{array}$$
Dadas as similaridades, a questão é: como distinguir a operação de adição da multiplicação? O leitor pode estar nesse momento indagando "Como assim distinguir? As operações são obviamente diferentes, já que $2 +3 = 5$ e $2 \times 3 = 6$." Para esclarecer porque a nossa pergunta não é tão fácil, imaginamos que extraterrestres chegaram hoje ao planeta. E na matemática alienígena há um conjunto com as mesmas propriedades dos números reais, e uma operação com as mesmas características da nossa adição. É claro que o nome desse conjunto e dessa operação alienigena e toda a simbologia é diferente da nossa. Porém, a menos da nomenclatura, ambas as estruturas algébricas desenvolvidas pelos humanos e aliens é a mesma, e não podemos diferenciá-la. O que temos em ambas as civilizações um conjunto de símbolos (os "números") e uma função que nos diz como dois desses símbolos viram um outro (a "operação"), e é possível fazer uma correspondencia entre cada símbolo usado por humanos/e.t.'s de modo que no fundo ambas são a mesma coisa.
Por exemplo, consideremos os conjuntos $A = \{ \diamondsuit, \heartsuit \}$ e $B = \{ \spadesuit, \clubsuit \}$. O conjunto $A$ está munido de uma operação denotada por "$\bullet$" e $B$ possui a operação "$\circ$" que satisfaz:
$$\begin{array}{cc} \qquad \textrm{Em } A & \qquad \textrm{Em } B \\ \qquad \diamondsuit \bullet \diamondsuit = \diamondsuit & \qquad \clubsuit \circ \clubsuit =\clubsuit \\ \qquad \diamondsuit \bullet \heartsuit= \heartsuit & \qquad \clubsuit \circ \spadesuit=\spadesuit \\ \qquad \heartsuit\bullet \diamondsuit = \heartsuit& \qquad \spadesuit \circ \clubsuit =\spadesuit\\ \qquad \heartsuit \bullet \heartsuit= \diamondsuit & \qquad \spadesuit\circ \spadesuit=\clubsuit \end{array}$$
Reparamos que $\heartsuit, \diamondsuit$ tem o mesmo papel em $A$ que $\spadesuit, \clubsuit$, nessa ordem, possuem em $B$ quando realizamos as respectivas operações. Ou seja, a correspondencia $\heartsuit \leftrightarrow \spadesuit$ e $\diamondsuit \leftrightarrow \clubsuit$ identifica os conjuntos $A$ e $B$ e as operações $\bullet$ e $\circ$. Isso significa que a menos da simbologia, as operações possuem a mesma estrutura.
Exercício: No exemplo acima, mostre que a correspondencia não poderia ser $\heartsuit \leftrightarrow \clubsuit$ e $\diamondsuit \leftrightarrow \spadesuit$.
Dado um conjunto e uma operação, usaremos parênteses quando estivermos considerando ambos juntos. Por exemplo, no exemplo anterior temos $(A, \bullet)$ e $(B, \circ)$. Voltando ao começo do post, finalmente podemos explicar a questão: o que queremos é distinguir $(\mathbb R, +)$ de $ (\mathbb R, \times)$. Em ambas as situações, temos um conjunto juntamente com uma operação. Os conjuntos tem o mesmo tamanho (cardinalidade) e as operações tem propriedades similares. Na verdade, as propriedades não são exatamente iguais, embora as tenha redigido de forma capciosa para exaltar as similaridades. No contexto dos números reais é importante notar que a propriedade do inverso para a multiplicação só é válida para números não nulos. Isto é, o zero não possui inverso! Ou seja, em $(\mathbb R, \times)$ temos um elemento que quando operado com qualquer outro resulta nele mesmo. Isso não acontece para a adição. Portanto, $(\mathbb R, +)$ e $(\mathbb R, \times)$ são diferentes.
Mas o que acontece se removermos o zero do conjunto da multiplicação? Isto é, se considerarmos o conjunto $\mathbb R^*= \{ x \in \mathbb R | \, x \neq 0\}$ dos números reais não nulos. Ainda assim ocorre que $(\mathbb R^*, \times)$ é "diferente" de $(\mathbb R, +)$. De fato, podemos considerar os elementos -2 e +2. Ao serem operados consigo mesmo pela multiplicação, ambos resultam em 4.Isto é
$$(-2) \times (-2) = 2 \times 2$$
Entretanto, o mesmo não ocorre para a adição. Não existem elementos distintos $x,y \in \mathbb R$ tais que
$$x + x= y + y$$
Isso justifica a afirmação de que $(\mathbb R^*, \times)$ e $(\mathbb R,+)$ são distintos. Vamos dificultar ainda mais a questão removendo os números negativos. Consideraremos o conjunto $\mathbb R^*_+= \{ x \in \mathbb R | \, x > 0\}$ e a pergunta agora é: Como distinguir $(\mathbb R, +)$ e $(\mathbb R^*_+, \times)$? Surpreendentemente (ou não) o que ocorre é que ambos são "iguais" no sentido algébrico (o termo técnico adequado é "isomorfos"). Para cada elemento de um dos conjuntos é possível encontrar um correspondente no outro conjunto com as mesmas propriedades, como fizemos no exemplo com dois elementos. Mais precisamente, é possível construir uma correspondência (que chamaremos de $f$) entre esses conjuntos que preserva as operações:
$$\begin{array}{lr} f: \mathbb R \to \mathbb R^*_+ & \\ f(x+y) = f(x) \times f(y) & \qquad \qquad (*)\end{array}$$
Reparamos que o que uma função com a propriedade acima nos diz é que tanto faz somarmos dois números e aplicarmos $f$ ao resultado da soma, ou aplicarmos $f$ a cada um dos termos individualmente e posteriormente multiplicarmos. Ou seja, $f$ transforma somas em produtos. Se existir uma $f$ com essa característica e que seja bijetora, para cada soma possível em $\mathbb R$, faremos corresponder um produto possível em $\mathbb R^*_+$. Em outras palavras, se $a,b,c \in \mathbb R$ são tais que $a+b=c$ então os elementos $f(a), f(b), f(c) \in \mathbb R^*_+$ são tais que $f(a) \times f(b) = f(c)$. A inversa de $f$, que chamaremos de $g$, fará o contrário: Se $A,B,C \in \mathbb R_+^*$ são tais que $A \times B = C$ então $g(A), g(B), g(C)$ são tais que $ g(A) + g(B) = g(C)$. Isto é, $g$ satisfaz:
$$\begin{array}{lr} g: \mathbb R^*_+ \to \mathbb R & \\ g(x\times y) = g(x)+ g(y) & \qquad \qquad (**)\end{array}$$
Exercício: Usando o exemplo dado anteriormente, mostre que não existe bijeção de $\mathbb R$ em $\mathbb R^*$ com a propriedade $(*)$.
O leitor mais atento deve ter percebido que a função exponencial possui a propriedade $(*)$ e sua inversa, o logaritmo, possui $(**)$. De fato, se $b>0, b \neq 1$ temos que:
$$ f(x) = b^x \implies f(x+y) = b^{x+y} = b^x \times b^y = f(x) \times f(y) $$
$$ g(x) = \log_b x \implies g(x \times y ) = \log_b (x \times y) = \log_b x + \log_b y = g(x) + g(y)$$
Isso significa não só que $(\mathbb R, +)$ e $(\mathbb R_+^*)$ são "iguais", mas que a correspondencia entre os conjuntos pode ser feita de infinitas formas diferentes através de alguma exponencial. Por exemplo, escolhendo uma base, digamos 2, podemos criar a correspondencia entre as tabelas de operações (que é infinita nesse caso). A correspondência é $x \leftrightarrow 2^x$, isto é, $x \leftrightarrow f(x)$:
$$\begin{array}{ll} \qquad \textrm{Em } (\mathbb R,+) & \qquad \textrm{Em } (\mathbb R^*_+) \\ \qquad 3 + 5 = 8& \qquad 2^3 \times 2^5 = 2^8 \\ \qquad 1,3 + 0 = 1,3 & \qquad 2^{1,3} \times 2^0 = 2^{1,3} \\ \qquad \pi - \pi = 0 & \qquad 2^\pi \times 2^{-\pi} = 2^0\\ \qquad \cdots \qquad& \qquad \cdots \qquad \end{array}$$
A propriedade $b^{x+y} = b^x \times b^y$ é a mais importante (na opinião do autor do post) das exponenciais. Ela é natural para expoentes naturais e a potenciação de inteiros e racionais é definida justamente para que continue válida. Recordamos, por exemplo, que se $b \neq 0$ então definimos $b^0$ com 1 pois é necessário que para todo $x$:
$$b^{0+x} = b^0 \times b^x \implies {b^x} = b^0 \times {b^x} \implies b^0 = 1$$
Similarmente, devemos ter $b^{-x} = \dfrac 1{b^x}$, de forma que $b^{x+y} = b^x \times b^y$ continue válida. E as definições para expoentes racionais também tem em mente $b^{x+y} = b^x \times b^y$.
Exercício: "Deduzir" qual deve ser a definição para $b^{m/n}$ de forma que $b^{x+y} = b^x \times b^y$ seja válida para $x,y \in \mathbb Q$.
Para expoentes irrracionais, entretanto, além dessa propriedade, é necessário usar que $f(x)$ é uma função monótona (estritamente crescente ou decrescente). É possível provar que qualquer função monótona de $\mathbb R$ em $\mathbb R_+^*$ com a propriedade $(*)$ é uma função exponencial. (Segue também que funções exponenciais são sempre contínuas). Assim, tais características de fato caracterizam as funções exponenciais. As demais propriedades das exponenciais seguem dessas duas e as dos logaritmos decorrem de serem inversas de exponenciais. Deixaremos algumas como exerícios e discutiremos outras. Em todos os exercícios suporemos $b>0$, $b \neq 1$.
Exercício: Use as propriedades de exponencial para deduzir as análogas de logaritmos.
a) $b^0 = 1 \implies \log_b 1 = 0$
b) $b^1 = b \implies \log_b b = 1$
Exercício: Mostre que $\log_b b^x = x$.
Exercício: Mostre que se $b^{x-y} = \dfrac{b^x}{b^y}$ para todo $x,y$ então $\log_b \dfrac xy = \log_b x - \log_b y$ para todo $x,y$ positivos.
Vamos discutir a propriedade $ \left(b^{x}\right)^y = b^{xy}$. Para $y$ natural racionais, tal propriedade pode ser verificada diretamente:
$$ \left(b^{x}\right)^y = \underbrace{b^ x \times \cdots \times b^x}_{y \textrm{ vezes}} = b^{x+\cdots x+ x} = b^{xy}$$
Entretanto, se $y$ não é natural, não faz sentido falar em $y$ vezes, assim não é tão óbvio a validade. De qualquer forma, esse resultado segue sem muita dificuldade para $y \in \mathbb Q$ (veja o exercício a seguir). Para $y$ irracional, novamente é necessário usar argumentos de limites, que fogem do escopo desse post. Dessa propriedade, nasce a análoga para logaritmos: $\log_b(x^y) = y \times \log_b x$.
Exercício: Sendo $x$ ou $y$ racional, mostre que $ \left(b^{x}\right)^y = b^{xy}$.
Exercício: Verifique que $\log_b(x^y) = y \times \log_b x$ para todo $x>0$, $y \in \mathbb R$ usando que $ \left(b^{x}\right)^y = b^{xy}$ para quaiser $x,y \in \mathbb R$.
Consideremos agora a propriedade $b^{\log_b x} = x$. Essa propriedade é justamente a definição de funções inversas. Isto é, sendo $f(x) = b^x$ e $g(x) = \log_b x$ temos
$$(f \circ g)(x) = f(g(x)) = x \implies b^{\log_b x} = x$$
(Notamos que a ordem $g \circ f$ foi discutida em um dos exercícios anteriores). Nessa expressão, supondo $x> 0$ e $x \neq 1$ podemos aplicar $\log_x$ em ambos os membros, obtendo
$$\log_x \left( b^{\log_b x} \right) = \log_x x = 1 \implies \log_x b \times \log_b x = 1$$
Essa última igualdade pode ser refinada, dando origem a "fórmula de mudança de bases", que deixamos como exercício.
Exercício: Sendo $b,c$ positivos e diferentes de 1, verifique que $\log_b x = \dfrac{\log_c x}{\log_c b}$.
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